O fim do bairro mais bonito da Faixa de Gaza

15/11/2023

Fonte: Por g1 BBC Por Alice Cuddy

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Antes de ser arrasado por bombardeios, al-Zahra era um bairro nobre, com grandes apartamentos e casas, parques e bosques.

Por volta do meio-dia da sexta-feira, 20 de outubro, os moradores de al-Zahra, sofisticado bairro de Gaza, estavam entre a poeira e escombros do que, dias antes, eram as suas casas.

Sextas-feiras costumavam ser dias especiais: no islamismo, o dia da oração marca o começo do fim de semana e, no bairro de al-Zahra, significava falafel e hummus, café e chá, todos servidos em espaçosos apartamentos ou vilas perto do Mar Mediterrâneo. Os moradores sabiam que tinham mais sorte do que a maioria da população de Gaza.

No entanto, durante a noite, bombas israelenses destruíram 25 blocos de apartamentos, lares de muitas centenas de pessoas. Israel vinha bombardeando Gaza há dias em resposta aos ataques do Hamas de 7 de outubro, mas al-Zahra não havia sido atingida até então.

 

Alguns dos que viviam lá, entre médicos, advogados, pesquisadores acadêmicos, designers de moda e empreendedores, tentaram ficar e sobreviver em meio às ruínas, mas a maioria recolheu o pouco do que restou a se dispersou ao longo da Faixa de Gaza.

Hana Hussen, que cresceu em al-Zahra, acompanhou horrorizada as notícias a centenas de quilômetros de distância, na Turquia, para onde ela se mudou dois anos atrás. Em um telefonema apressado naquela dia, ela ligou para a família na tentativa de entender se eles estavam em segurança.

Ela disse que os amava. E a ligação caiu.

‘Obrigado por perguntar. Ainda estamos vivos’

 

Os moradores dos blocos destruídos vinham se protegendo das bombas em uma universidade próxima graças aos esforços do dentista local Mahmoud Shaheen, que liderou uma evacuação em massa de seus vizinhos. A BBC contou, na semana passada, a história sobre como ele recebeu uma ligação de um agente da inteligência israelense avisando que os blocos seriam bombardeados.

 

Em resposta à BBC sobre a decisão de atingir o bairro de al-Zahra, as Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês) disseram que "não é possível esclarecer perguntas sobre operações específicas".

 

O Hamas estava atacando Israel de diferentes partes de Gaza "e se infiltrou na infraestrutura civil", acrescentou o IDF. Não foram divulgados nomes de integrantes do Hamas mortos nos ataques em al-Zahra, e acredita-se que ninguém do grupo tenha sido atingido nesse bombardeio.

Israel afirma que sua estratégia visa a erradicar o Hamas, que é acusado de operar no coração de comunidades civis — e que vem tomando providências para reduzir mortes de inocentes, como o telefonema, mencionado acima, feito a Mahmoud o instruindo a evacuar o bairro.

 

O agente que telefonou para o dentista também disse: "Nós vemos coisas que vocês não veem".
Os vizinhos de Mahmoud podem ter escapado vivos, mas nem todos sobreviveram ao que estava por vir.

A BBC passou duas semanas conversando com diversas famílias da região, tanto moradores de longa data quanto os mais jovens e ambiciosos recém-chegados.

Eles nos contaram sobre como salvaram o que puderam de suas casas, assistiram de perto aos seus lares explodindo e como se dispersaram ao longo de Gaza rumo a um destino incerto. De abrigos improvisados a refúgios temporários ao longo de Gaza, moradores queriam contar as histórias da vida e morte do bairro que amavam.

Nossa comunicação foi feita por meio de ligações que caíam — às vezes com bombas estourando ao fundo — e mensagens esporádicas via WhatsApp. Conversas era interrompidas para correr em busca de abrigo. Em alguns casos, perdemos contato por dias.

Após um blecaute de comunicações durante ataques intensos de Israel em Gaza, um morador de al-Zahra conseguiu escrever uma mensagem curta: "Obrigado por perguntar. Nós ainda estamos vivos".

 

Nossas conversas mostram que nem todos que saíram de al-Zahra sobreviveram. Entre aqueles confirmados mortos estão um jovem fisiculturista de uma academia local cujas últimas palavras para um amigo, segundo posts em redes sociais, foram: "Está tudo acabado".

O Ministério da Saúde controlado pelo Hamas afirmou que mais de 10 mil palestinos foram mortos em Gaza desde o começo da guerra, sendo que mais de um terço eram crianças.

A Faixa de Gaza é densamente povoada, tem altos níveis de pobreza e forte controle da entrada e saída de pessoas. Al-Zahra, no entanto, era um bairro com grandes casas e espaços ao ar livre bem iluminados, bosques com amendoeiras e figueiras, áreas esportivas e parques.

Al-Zahra foi fundada nos anos 1990 pelo ex-presidente da Autoridade Palestina Yasser Arafat (1929-2004) como um lugar para sua equipe e também apoiadores. Moradores dizem ainda ter fortes conexões com a Autoridade Palestina, que hoje está baseada na Cisjordânia ocupada e é um rival direto do Hamas.

O bairro está ao norte do rio Wadi Gaza — ponto ao sul do qual Israel ordenou que a população se dirigisse, em 13 de outubro. Os dias seguintes foram de bombardeios, uma resposta de Israel às centenas de homens armados que invadiram a fronteira para assassinar mais de 1,4 mil pessoas, a maioria de civis, incluindo muitas crianças, além da captura de mais de 200 reféns. A brutalidade dos ataques em bairros do Sul de Israel e o massacre de jovens que participavam de um festival de música traumatizaram o país.

Todas as pessoas com as quais conversamos insistiram em dizer que, até onde sabiam, esse bairro era o mais distante possível do Hamas e de suas operações em Gaza, governada pelo grupo desde 2007. "Não existiam militares aqui", nos disse um morador. "Eu não acredito sequer que apoiadores do Hamas viviam aqui", acrescentou.

 

Para Nashwa Rezeq, que viveu em al-Zahra durante 18 anos, "era o melhor bairro de todos".

Muito envolvida em associações de bairro e em um conselho de jovens local, Nashwa também foi uma das organizadoras de uma comunidade no Facebook por mais de uma década. Se você perguntá-la sobre algum morador em particular, ela provavelmente vai conhecê-lo e talvez ter seu contato telefônico.

A página no Facebook tinha aproximadamente 10 mil seguidores. Na véspera da guerra, os posts eram sobre torneios de bilhar, um café local ou mensagens de parabéns a um estudante recém-formado.

Agora o mesmo grupo serve como veículo para compartilhar atualizações sobre a destruição do bairro e contar os mortos. O grupo nunca tinha ocupado tanto o tempo de Nashwa.

Um post recente lamenta a morte dos integrantes de uma família dona de um restaurante italiano bombardeado. Quando a guerra foi declarada, Nashwa foi para o Sul com seu marido e quatro filhos, atitude que a família sempre tinha quando as tensões aumentavam. Antes, entregou sua chave a uma vizinha, pedindo que cuidasse de suas amadas plantas enquanto ela estava fora.

Dois dias depois dos primeiros bombardeios, seu prédio — o mais alto de al-Zahra — foi destruído ao amanhecer.

 

"Uma pessoa me ligou e disse que 'andou ao lado da sua torre e estava tudo no chão'," lembra.