Análise: Trump inventa crises para acumular poder na Casa Branca, dizem especialistas em Direito nos EUA

12/06/2025

Fonte: O globo Por Adam Liptak — Washington

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Para juristas, uso político de medidas emergenciais, como o envio da Guarda Nacional a Los Angeles, ameaça a separação de poderes e amplia a autoridade do Executivo

Se dependesse apenas da narrativa do presidente americano Donald Trump, os Estados Unidos estariam enfrentando uma rebelião em Los Angelesuma invasão de uma gangue venezuelana e ameaças estrangeiras extraordinárias à sua economia.

Com base nessa série de supostas crises, Trump tentou recorrer a poderes emergenciais espalhados ao longo do Código dos EUA ao longo dos séculos. Convocou a Guarda Nacional para Los Angeles, contrariando o governador da Califórnia, enviou dezenas de migrantes para El Salvador sem o mínimo de devido processo legal e abalou a economia global com tarifas elevadas.

Segundo especialistas em direito, as ações do presidente não são permitidas pelas leis que ele alega e, na verdade, seguem outro objetivo.

— Ele está declarando emergências totalmente falsas com o objetivo de expandir seu poder, minar a Constituição e destruir liberdades civis — disse Ilya Somin, professor libertário da Faculdade de Direito Antonin Scalia, que representa um importador de vinhos e outras empresas que contestam algumas das tarifas impostas por Trump.

Crise é a marca registrada de Trump. Quando assumiu o cargo pela primeira vez, prometeu acabar com a “carnificina americana”. No anúncio de sua campanha mais recente à reeleição, declarou que reverteria o “declínio americano estarrecedor”. Desde sua primeira candidatura em 2015, argumenta que apenas ele pode restaurar a grandeza do país.

Agora de volta ao cargo, Trump está transformando essa retórica em política pública. Ele afirma que eventos e circunstâncias amplamente considerados rotineiros configuram emergências que lhe permitem acionar poderes raramente utilizados por seus antecessores, mas previstos em leis criadas por legisladores que queriam garantir rapidez e agressividade em crises autênticas.

Frank Bowman, professor de direito na Universidade do Missouri, afirmou que as leis evocadas por Trump foram concebidas com base na premissa de que a flexibilidade concedida não seria abusada.

— Emergências genuínas ocorrem, e o Congresso sabe que é lento — disse Bowman. — Ele quer que os presidentes ajam de boa-fé e com rapidez.

Mas, segundo Bowman, a abordagem de Trump é diferente.

—Declarar tudo como emergência começa a nos levar na direção do uso da força e da violência do governo contra pessoas que você não gosta — alertou.

Em nota, a porta-voz da Casa Branca, Taylor Rogers, afirmou que os democratas falharam “em proteger os americanos de ameaças econômicas e à segurança nacional, uma omissão que resultou em sérias crises”.

— O presidente Trump está, corretamente, usando sua autoridade executiva, como comprovam várias vitórias na Justiça, para trazer firmeza e alívio ao povo americano — declarou ela.

 

 

Na prática, tribunais de primeira instância têm, em sua maioria, rejeitado as alegações de poderes emergenciais feitas por Trump.

Em março, Trump invocou a Lei dos Inimigos Estrangeiros de 1798, que concede ao presidente poder para deportar cidadãos de nações envolvidas em guerra, invasão ou “incursão predatória”. Ele argumentou que o Tren de Aragua (TdA), uma gangue violenta da Venezuela, estava invadindo os Estados Unidos. A lei havia sido usada apenas três vezes antes: na Guerra de 1812, na Primeira Guerra Mundial e na Segunda Guerra Mundial.

Vários juízes já rejeitaram a ideia de que as ações da gangue justificariam o uso da lei.

Não há nada na lei de 1798, escreveu o juiz Alvin Hellerstein, da Corte Distrital dos EUA em Nova York, que “justifique considerar que refugiados vindos da Venezuela, ou membros da gangue TdA infiltrados entre eles, estejam envolvidos em ‘invasão’ ou ‘incursão predatória’”.

— Eles não buscam ocupar território, expulsar a jurisdição americana ou devastar o território — escreveu Hellerstein, nomeado pelo presidente Bill Clinton. — O TdA pode muito bem estar envolvido em tráfico de drogas, mas isso é uma questão criminal, não uma invasão ou incursão predatória.

Uma juíza, Stephanie Haines, da Corte Distrital da Pensilvânia Ocidental, indicada por Trump, decidiu de forma oposta, considerando que a gangue comete uma “incursão predatória”.

Mesmo sem recorrer à lei de 1798, Trump adotou a retórica de um país sitiado. Em meio a batidas intensificadas da Imigração e protestos violentos na Califórnia, prometeu “tomar todas as medidas necessárias para libertar Los Angeles da Invasão Migratória”.

Trump usou justificativa semelhante para impor tarifas em abril, alegando que “práticas comerciais e econômicas estrangeiras criaram uma emergência nacional”. Dois tribunais já decidiram contra ele, embora um tribunal de apelação tenha suspendido temporariamente a decisão mais ampla.

Autoridades da Califórnia contestaram na segunda-feira a alegação de Trump de que havia uma crise no estado que justificasse resposta federal extraordinária. Elas anunciaram um processo contra a federalização de uma unidade da milícia estadual. “A situação em Los Angeles não atende aos critérios para federalização, que incluem invasão por país estrangeiro, rebelião contra a autoridade do governo dos EUA e incapacidade de executar as leis federais”, afirmaram as autoridades.

A Suprema Corte ainda não se pronunciou sobre as recentes alegações de poderes emergenciais feitas por Trump. No passado, os juízes mostraram ceticismo em relação a esse tipo de argumento. Eles não hesitaram, por exemplo, em rejeitar os apelos do então presidente Joe Biden para usar a pandemia de Covid-19 como justificativa para ações emergenciais.

Duas cláusulas importantes da Constituição tratam de invasões. Uma proíbe os estados de entrar em guerra “a menos que realmente invadidos, ou em perigo iminente que não admita demora”. A outra diz que “o direito ao habeas corpus não será suspenso, exceto em casos de rebelião ou invasão, quando a segurança pública o exigir”.

A decisão mais importante da Suprema Corte sobre poderes emergenciais presidenciais veio em 1952, no caso Youngstown Sheet e Tube Company versus Sawyer, que rejeitou a alegação do então presidente Harry Truman de que a emergência nacional — no caso, a Guerra da Coreia — o autorizava a nacionalizar siderúrgicas diante de greves trabalhistas.

A decisão incluiu uma opinião histórica do juiz Robert Jackson, frequentemente citada por indicados à Suprema Corte em suas sabatinas no Senado. Jackson escreveu que os fundadores da Constituição desconfiavam da concessão de poderes emergenciais ao presidente:

 

“Eles sabiam o que eram emergências, sabiam da pressão por ações autoritárias que elas geram e sabiam, também, como podem servir de pretexto para usurpação”, escreveu ele. “Podemos suspeitar, ainda, que eles suspeitavam que os poderes emergenciais tenderiam a provocar emergências.”